sábado, 25 de outubro de 2008

Involução da Espécie

Ele sentia saudades da pacata vida no campo. Tardes passadas a café e pão de minuto na mureta do refeitório, onde os mais diversos assuntos pipocavam entre confidências e considerações sobre a vida alheia. Além dos bancos de alvenaria, tocos de lenha estalavam no fogão que aquecia um velho bule metálico, desgastado pelo tempo e pelas quedas. Ainda assim, o cheiro do café misturado à chuva do fim de tarde era imbatível. O cenário completava-se com o trajeto da água, que corria bica abaixo pelas corredeiras de madeira, até escorrer sobre o velho monjolo improvisado, que pilava os grãos que serviriam para o jantar.

Era uma vida amena, alheia ao frenesi da metrópole que agora ele chamava de sua terra. Ali não havia fogão à lenha nem comida fresca, não tinha cheiro de chuva e muito menos monjolo. Ali era tudo na base do microondas-congelados-poluição-triturador. Tudo minuciosamente projetado pra facilitar a vida, para preservar o nosso mais precioso bem: o tempo. E ainda assim, este (o tempo) corria muito mais depressa cá, na cidade, do que lá, no campo.

A cidade centralizava tudo. Era tudo organizado, conglomerado, ordenado e orientado pra trazer mais qualidade de vida. Todas grandes evidências de como o homem evoluiu e se distanciou daquele estilo de vida precário, quase primitivo que viveu na maior parte da sua história. E no entanto, até Homo-Erectus pareceu às vezes ser mais feliz do que seu longinquo sucessor, Sapiens Sapiens.

As invenções trouxeram ao homem sabedoria, praticidade e, essencialmente, dependência. Tanto é verdade, que para ele (o protagonista), a vida no campo era extremamente atrativa, mas impraticável. No campo não havia Wirelless, não tinha Leite UHT em caixa, e muito menos lasanha congelada. Lá não tinha TV a cabo, cobertura GSM, Bilhete único ou E-commerce. A pessoa mais próxima que poderia lhe enviar conteúdo por bluetooth estaria a pelo menos 500 km de distância. E no entanto, ele (o protagonista) não dependia mais das coisas do campo, aquelas que a vida lhe proporcionou naturalmente.

Todos esses pensamentos lhe passaram pela cabeça, enquanto ele bebericava, pela primeira vez em 15 dias consecutivos, um longo copo d'água gelada. Água Mineral pura, sem gás, sem gostinho de limão, sem "Zero Açúcar", sem caramelo, sem cafeína, sem conservantes.

E esse pensamento trouxe ao homem um prognóstico sombrio.

Ele viu as fendas se abrindo no solo árido, viu as carcaças juntando formigas, viu prédios em ruínas, viu o sol se esconder sob um céu cinza denso. Se assombrou com semelhantes disputando restos de comida, estapeando-se diante de um cesto de lixo virado. Exibiam olheiras profundas e costelas proeminentes debaixo de trapos de pano. Do céu, e essa foi a imagem que mais lhe marcou, chovia dinheiro, milhares de dólares, mas ninguém se preocupava em disputá- lo, e ele compreendeu o porquê: dinheiro não se come nem se bebe.

O homem entendeu que sua espécie estava fadada ao fracasso. Todo o caminho evolutivo percorrido levou a humanidade ao seu ponto de partida. Eram novamente primatas, subordinados à lei da natureza.

"Do pó vieste, ao pó retornarás".

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Naquela noite, ele (o protagonista) recolheu todos os seus pertences em numa mala de couro. Antes mesmo do sol nascer, ele partiu.