terça-feira, 27 de julho de 2010

Ain't no sunshine

Fade in.

Bill Withers canta ao rádio:

"Ain't no Sunshine when she's gone. It's not warm when she's away."

Plano aberto. O quarto é iluminado pelos raios de sol que vazam pela persiana e pelo fraco feixe de luz que o abajur verde musgo emana. As paredes estão descascadas e há rachaduras no teto. Ao centro, deitada na cama, está a atriz. Nua, ela fuma.

"I know, I know, I know, I know (...)"

Close nos dedos sustentando um cigarro. Um pan lentamente leva a câmera do abajur para os olhos semicerrados da moça. Livros rasgados no chão. No reflexo da TV apagada, os pés e pernas da atriz, movimentando-se ao ritmo da música.

Poeira dança pelo ar, iluminada pelas frestas da persiana.
A trilha segue. Cinzas salpicam os seios da atriz. O olhar lânguido para o espelho rachado a sua frente.

"Anytime she goes away, anytime she goes away"

Plano aberto, afastando-se do objeto da cena. Close na fumaça que sobe, finalizando em um desfoque.

Fade out.

sábado, 25 de outubro de 2008

Involução da Espécie

Ele sentia saudades da pacata vida no campo. Tardes passadas a café e pão de minuto na mureta do refeitório, onde os mais diversos assuntos pipocavam entre confidências e considerações sobre a vida alheia. Além dos bancos de alvenaria, tocos de lenha estalavam no fogão que aquecia um velho bule metálico, desgastado pelo tempo e pelas quedas. Ainda assim, o cheiro do café misturado à chuva do fim de tarde era imbatível. O cenário completava-se com o trajeto da água, que corria bica abaixo pelas corredeiras de madeira, até escorrer sobre o velho monjolo improvisado, que pilava os grãos que serviriam para o jantar.

Era uma vida amena, alheia ao frenesi da metrópole que agora ele chamava de sua terra. Ali não havia fogão à lenha nem comida fresca, não tinha cheiro de chuva e muito menos monjolo. Ali era tudo na base do microondas-congelados-poluição-triturador. Tudo minuciosamente projetado pra facilitar a vida, para preservar o nosso mais precioso bem: o tempo. E ainda assim, este (o tempo) corria muito mais depressa cá, na cidade, do que lá, no campo.

A cidade centralizava tudo. Era tudo organizado, conglomerado, ordenado e orientado pra trazer mais qualidade de vida. Todas grandes evidências de como o homem evoluiu e se distanciou daquele estilo de vida precário, quase primitivo que viveu na maior parte da sua história. E no entanto, até Homo-Erectus pareceu às vezes ser mais feliz do que seu longinquo sucessor, Sapiens Sapiens.

As invenções trouxeram ao homem sabedoria, praticidade e, essencialmente, dependência. Tanto é verdade, que para ele (o protagonista), a vida no campo era extremamente atrativa, mas impraticável. No campo não havia Wirelless, não tinha Leite UHT em caixa, e muito menos lasanha congelada. Lá não tinha TV a cabo, cobertura GSM, Bilhete único ou E-commerce. A pessoa mais próxima que poderia lhe enviar conteúdo por bluetooth estaria a pelo menos 500 km de distância. E no entanto, ele (o protagonista) não dependia mais das coisas do campo, aquelas que a vida lhe proporcionou naturalmente.

Todos esses pensamentos lhe passaram pela cabeça, enquanto ele bebericava, pela primeira vez em 15 dias consecutivos, um longo copo d'água gelada. Água Mineral pura, sem gás, sem gostinho de limão, sem "Zero Açúcar", sem caramelo, sem cafeína, sem conservantes.

E esse pensamento trouxe ao homem um prognóstico sombrio.

Ele viu as fendas se abrindo no solo árido, viu as carcaças juntando formigas, viu prédios em ruínas, viu o sol se esconder sob um céu cinza denso. Se assombrou com semelhantes disputando restos de comida, estapeando-se diante de um cesto de lixo virado. Exibiam olheiras profundas e costelas proeminentes debaixo de trapos de pano. Do céu, e essa foi a imagem que mais lhe marcou, chovia dinheiro, milhares de dólares, mas ninguém se preocupava em disputá- lo, e ele compreendeu o porquê: dinheiro não se come nem se bebe.

O homem entendeu que sua espécie estava fadada ao fracasso. Todo o caminho evolutivo percorrido levou a humanidade ao seu ponto de partida. Eram novamente primatas, subordinados à lei da natureza.

"Do pó vieste, ao pó retornarás".

- x -

Naquela noite, ele (o protagonista) recolheu todos os seus pertences em numa mala de couro. Antes mesmo do sol nascer, ele partiu.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Storyboard

A agulha rasga delicadamente os vincos do biscoito de vinil. Um baixo grave inaugura a faixa, numa tonalidade soturna, acompanhado pelos baques secos da bateria. John Lennon canta fino: 

Here come old flattop, he come, groovin up slowly (...)

Dedos levantam as meias de algodão pretas sobre as canelas, e os pés se encaixam no par de sapatos bem lustrados e vistosos. Um close-up na altura dos quadris apresenta um protagonista encaixando cuidadosamente sua parceira no coldre. No reflexo do espelho, ele ajeita o farto bigode salpicado de fios brancos por entre a maioria dos pêlos negros. E masca um chiclete.

Já fardado, bate a porta do apartamento, revelando parte de um maço de Lucky Strike, que repousa junto ao peito, no bolso.

(...) Got to be a joker, he just do what he please (...)

Ele ganha as ruas com um andar destemido. As pessoas o observam com reverência, um certo reconhecimento de sua autoridade. Ele seleciona um entre os cigarros do seu maço e posiciona-o entre os lábios. Um homem parado à frente da quitanda, entrega-lhe uma caixa de fósforos. Ele acende seu cigarro, mete os fósforos no bolso e pede um refrigerante.

(...) monkey finger, he shoot, Coca-Cola, he say (...)

No caminho do trabalho, desfruta o refrigerante em três goles longos. Mete a bituca pela boca da garrafa, arremessa com precisão o vasilhame num cesto de lixo e adentra a delegacia. A jovem secretária observa-o com admiração, mas antes que possa lhe dar um "bom dia", o rádio interrompe o iminente diálogo, com uma nova ocorrência. Logo, 2 oficiais de fardas pretas se juntam ao destemido protagonista, que toma o assento de motorista do velho Ford Crown Victoria, placa 28IF. 

O veículo ganha as avenidas com rapidez, dobrando esquinas abruptamente e fazendo os oficiais sacolejarem dentro do automóvel, enquanto o motorista sorri com mais um cigarro entre os dentes. A luz do sol torna as lentes do Ray Ban levemente translúcidas, revelando sangue e adrenalina nos olhos do condutor.

Logo chegam a um velho prédio abandonado. Para surpresa de todos, o elevador funciona, ainda que precariamente. Um dos oficiais pressiona o botão 5, e aguarda. Já postados à porta de um dos apartamentos, os dois oficiais encaram o protagonista, que conserva o olhar de loucura.

(...) Hold you in his armchair, you can feel his disease (...)

Ele os encara de volta e convida para o show.

(...) Come together, right now, over me (...)

Mete o pé na porta com força.

Paralelamente, o solo incendiário de teclado ilustra a cena de tiroteio. 

Reagindo rapidamente, quatro bandidos tombam a mesa de cartas, transformando-a numa trincheira. Projéteis voam pela saleta, e policiais e bandidos trocam tiros do batente para a mesa, e vice-versa. 

A guitarra torna o ambiente mais psicodélico e abafa os ganidos daqueles que foram baleados. Em seguida, os instrumentos silenciam e, novamente, apenas o baixo dá o tom da cena.

Agachado à porta, um dos policiais afaga o braço direito, enquanto o sangue lhe corre entre os dedos. Há buracos de bala por toda a parede. À frente dos oficiais, corpos repousam inanimados. O protagonista leva o cano fumegante de volta ao coldre e conta os bandidos.

(...) one, and one, and one is three (...)

Resta um gatuno no local, esgueirado em algum dos cômodos. Vigilantes, os policiais investigam o local. A sala é iluminada apenas pelos feixes de luz que penetram pelos buracos da persiana de metal. Mas antes que possam reagir, o úlltimo dos bandidos surge no final do corredor, empunhando uma shotgun calibre 12. Em Slow Motion, ele dispara contra os homens desavisados. 

Um tiro para cada. 

As balas se estilhaçam em minúsculas partículas que perfuram o torso dos policiais. Novamente, a guitarra silencia os feridos

O bandido joga a espingarda no chão e caminha para a saída. Um close-up na face do protagonista exibe toda sua virilidade se esvaindo, junto com o pouco de vida que lhe resta. Ao fundo, a trilha lentamente se apaga, dando lugar ao som da ignição e do motor se distanciando. 

(...) one, and one, and one is three (...)

Fade out para o preto.

Sugestão de trilha-sonora para Leitura: The Beatles - Come Together

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Dos contos desaparecidos

Caros colegas,


Em meu nome e no de Hesílio, agradeço fervorosamente a presença dos poucos, porém frequentes leitores deste blogue.

Há algum tempo, me propus escrever um conto em diversas partes, sem sequer desconfiar do rumo que ele poderia tomar e do número de capítulos que teria. Simplesmente decidi que escreveria alguns parágrafos para então misturar as estórias. Baseado em memórias e acontecimentos cotidianos, iniciei o exercício.

Entretanto, passados 2 meses, optei por descontinuar a sequência de contos. Não por preguiça, ou por bloqueio, mas simplesmente porque me vi descontente com o rumo que a história tomou, e isso fez com que eu perdesse o estímulo para postar uma sequência.

Por ora, prefiro removê-la do blogue e me permitir escrever sobre outras coisas que ainda pipocam nos meus pensamentos. Quem sabe, um dia volte a cutucar este conto e publique-o aqui, devidamente concluído e, muito provavelmente, modificado.

Com isso, espero manter alguns dos fiéis leitores que felizmente conseguimos desde que o Clube é Clube, e quiçá conquistar um punhado a mais. Espero também encontrar sugestões, críticas e até textos por essas bandas nos próximos meses.

Garanto-lhes contos e crônicas auspiciosas.

Abraços Fraternos,

Basílio Sgaratti

terça-feira, 20 de maio de 2008

Jornada efêmera

O andarilho acordaria cedo no próximo alvorecer. Partiria de mala e cuia para um destino incerto - para onde o vento lhe orientasse. Enfrentaria o calor destrutivo do meio-dia e chegaria ao vilarejo mais próximo ao fim da tarde, sem nada ter comido. Não beberia água até a manhã seguinte, quando seria acordado pelos guardas com chutes.

Seria capturado por homens de farda que o levariam a uma cela escura. Ali, beberia uma água turva e comeria um pão embolorado, servido numa vasilha de metal imunda. Passaria três dias consecutivos sob tal dieta, até que um general condecorado aparecesse para lhe interrogar. Balbuciaria sem forças suas respostas e em troca receberia golpes na nuca e no estômago. Depois cuspiria um sangue denso sobre o chão de concreto áspero, onde passaria as próximas 6 horas, sob o efeito alucinógeno da dor.

Acordaria com a cusparada do general repousando sobre sua face. O homem portaria um documento em papel amarelado, outorgando-lhe a liberdade, sob a condição de exílio do vilarejo. O andarilho então aceitaria a proposta sem pestanejar e partiria para um novo destino tão logo pudesse. Na saída do quartel, os guardas zombariam de sua aparência e lhe golpeariam o fígado com a coronha de suas espingardas. Ele capengaria até a saída, onde recobraria o fôlego e partiria de volta à estrada.

Antes, porém, que muito pudesse avançar, seria abordado por dois gatunos que tomariam os poucos pertences que lhe restavam (um lenço bordado com suas iniciais, um isqueiro engasgado, uma caneta de ponta fina e um pequeno bloco de notas rasurado). Depois amaldiçoaria sua jornada audaz e recairia sob uma palmeira na planície onde se encontrava.

Amanheceria com a brisa afagando-lhe a face e o sol dourando seus cabelos. Sentiria a barba coçar enquanto as moscas lhe roçassem as bochechas, farejando podridão. Sentiria a picada lancinante de um escorpião lhe rasgar a fíbula e depois pereceria sob o sol escaldante, enquanto o veneno espesso lhe tomaria as veias rumo ao átrio. Tudo escureceria.
- x -

De súbito, o andarilho despertou da alucinação proveniente de uma forte insolação. Isolado na planície árida do deserto, ele enxergou dois vultos se aproximando no horizonte trêmulo. Contaminado pelo mau presságio que o sol lhe confiou, o pobre homem tateou os bolsos desesperadamente até encontrar um caneta de ponta fina, com a qual perfurou a própria garganta e sangrou até a morte.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Auto-Ajuda

"Eu sou o único responsável pelo rumo que a minha vida toma. As outras pessoas são apenas coadjuvantes da minha história, porque no fim das contas, sou eu quem decide como vai ser do início ao fim. Sou eu quem faz as escolhas.

Se vida está boa, é mérito meu. Se a vida está uma merda, a culpa é minha. Ninguém é influente o bastante para mudar minha vida ou decidir o meu destino. É uma questão de força ou de fraqueza, de foco ou da falta dele. É a opção de ser impulsivo ou racional. De correr riscos ou fugir deles.

Eu posso mudar minha vida se eu quiser. Basta que eu defina um objetivo e me dedique o suficiente para que ele se concretize. Sem me acomodar, sem ser negligente, sem mentir para mim mesmo. Não adianta fingir ser outra pessoa, acreditar nas minhas próprias máscaras. Não adianta distribuir a culpa, ou passá-la para frente.

Eu preciso fazer escolhas o tempo todo. Eu sou a amálgama dessas escolhas, o que resta das minhas decisões. Se sou infeliz, o sou por que em algum momento fui indolente. Eu não posso simplesmente esperar a mudança e me acomodar. Eu preciso me mexer, eu preciso me superar.

Eu preciso ser mais.

Eu posso ser maior do que o meu corpo permite. Não existe a incapacidade. Eu posso ir além das barreiras, posso ultrapassar os limites. Eu não preciso ser sempre a mesma coisa. Eu posso mudar. Sempre. Por que nunca é tarde para mudar. Eu simplesmente não preciso colher os frutos de uma decisão infeliz para o resto da vida. E eu me dou o direito de fazer quantas escolhas infelizes eu quiser. Eu sou o meu juiz. Eu dependo das coisas das quais eu decidi depender. Eu valorizo o que eu bem entender. Eu acredito no que quiser.

Não, não quero morrer infeliz e sozinho. Não quero viver sem sentido. Não quero ser escravo da indolência. Não quero ser patético e colocar a culpa na sociedade. Na verdade, não quero esperar nada da sociedade. Não quero ser famoso e nem quero me tornar uma lenda. Não quero carregar um legado e tampouco deixá-lo de herança a alguém. Eu quero apenas que a minha vida faça sentido para mim. E se um dia ela não fizer sentido, é porque tem algo muito errado. Então eu saberei que é hora de mudar.

Eu, eu, eu, eu, eu.
E quanto aos outros?

Bem, o mesmo vale para os outros e para você. Acredite ou não."

Imprima este trecho. Acorde todas as manhãs e leia-o atentamente.
Pare de procurar um sentido para sua vida, e simplesmente dê um sentido à ela.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Conto Crônico


Carapicuíba do Norte fervilhava com o festival nacional de crônicas. O turismo movimentava o comércio, as pousadas e os bordéis. Era o evento bienal de maior destaque da pequena cidade depois do carnaval. Milhares de estudantes, professores, jornalistas e, claro, cronistas de todas as nacionalidades se reuniam ao redor da Praça Roosevelt Menezes para ouvir atores a autores declamando textos sublimes, vigorosos ou parnasianos. O nome da Praça provinha de um antigo pensador e fundador do jornal local.

Não havia vencedores. Ou melhor, só havia vencedores. Todos ganhavam com a disseminação da literatura, porque ali aprendiam novos vocábulos, novas maneiras de expressão, e conheciam melhor a natureza do ser humano. Além disso, revelavam-se novos autores a cada edição do evento.

Era uma dádiva para a cidade se tornar o celeiro na nova crônica brasileira. Não fosse o festival, a cidade teria se tornado apenas mais um mandacaru incrustado no sertão agreste. Mas a língua hidratou aquele solo e fez com que ali florescesse um movimento literário sem precedentes naquele Brasil analfabeto.

- X -

Solano Pascal nasceu num berço de vime e tinha pai desconhecido. Morava numa casa modesta de pau-a-pique, e sua família detinha pouco mais de um oitavo de alqueire que era destinado exclusivamente à plantação e colheita de Jenipapo para venda no comércio local. Desde os 6 anos, o garoto trabalhava no roçado debaixo de sol quente. No final de tarde, com os ombros em chamas, voltava para casa e tentava decifrar os símbolos de um antigo livro de português que possuía. À luz de velas, aprendia com a mãe o português rudimentar passado de geração a geração, e se interessava cada vez mais pela escrita.

Aos 10 anos, Solano saiu do roçado pela primeira vez para visitar a cidade. Chegou a Carapicuíba do Norte com um saco de Jenipapo às costas e mais nada. Iria vender o excedente da produção e pegar carona num caminhão pau-de-arara. Coincidentemente, era época do festival nacional de Crônicas, e o garoto resolveu espiar. Encantou-se pelo que viu, e voltou para casa no dia seguinte, com alguns trocados, mais uma pilha de crônicas mimeografadas debaixo do braço. Decidiu naquele dia que seria cronista.

- X -

Na segunda vez que visitou a cidade, dois anos depois, Solano esperava encontrar Carapicuíba do Norte novamente tomada pelo fervor do festival. Mas nada acontecia por lá. O festival aconteceria apenas dali três meses e além disso, o motivo da sua ida era outro. Sua saúde estava debilitada, e a mãe o acompanhou até o Hospital Municipal. O garoto tinha fortes dores no corpo e na cabeça, tinha hemorragias freqüentes e mal agüentava trabalhar no roçado. Após de uma bateria de exames nos equipamentos primitivos do hospital, o médico diagnosticaria, uma semana depois, que o garoto tinha Leucemia Crônica, já em estágio avançado.

Solano foi internado às pressas no modesto hospital, e tratado na medida do possível. Ingeria medicamentos pesados que lhe inchavam o fígado diariamente, e eventualmente, passava por sessões desgastantes de quimioterapia. Quando lhe sobrava alguma disposição, o garoto se punha a escrever, da maneira que sabia, uma crônica. A mãe assistia a tudo inerte. Nada podia fazer a não ser lamentar e orar.

O festival se aproximava, e Solano levava fé que conseguiria ler sua crônica no palanque da Praça Roosevelt Menezes. Tinha escrito com todo seu empenho e revisava constantemente sua obra singular. Até se sentia mais disposto, como se estivesse vencendo a enfermidade. Dizia para mãe que seria um cronista famoso, e que sua família nunca mais precisaria colher Jenipapos.

- X -

Na madrugada que antecedeu o festival, o garoto sofreu uma recaída. Sua condição deixou de ser estável e a mãe ouviu ali a voz de Deus pedindo-o de volta. Solano foi levado pelos anjos às quatro e quinze da madrugada.

O coração estraçalhado da mãe só lhe dava uma orientação, e ela seguiu dignamente. Na manhã seguinte, ela subiu no palanque da Praça e declamou a crônica que o filho escrevera nos meses anteriores. Com o peito rasgado, a mulher compartilhou com os presentes a dor de perder um filho e levou a todos o testemunho de quem sofreu com o pior mal do mundo, a Leucemia.