quinta-feira, 10 de abril de 2008

Conto Crônico


Carapicuíba do Norte fervilhava com o festival nacional de crônicas. O turismo movimentava o comércio, as pousadas e os bordéis. Era o evento bienal de maior destaque da pequena cidade depois do carnaval. Milhares de estudantes, professores, jornalistas e, claro, cronistas de todas as nacionalidades se reuniam ao redor da Praça Roosevelt Menezes para ouvir atores a autores declamando textos sublimes, vigorosos ou parnasianos. O nome da Praça provinha de um antigo pensador e fundador do jornal local.

Não havia vencedores. Ou melhor, só havia vencedores. Todos ganhavam com a disseminação da literatura, porque ali aprendiam novos vocábulos, novas maneiras de expressão, e conheciam melhor a natureza do ser humano. Além disso, revelavam-se novos autores a cada edição do evento.

Era uma dádiva para a cidade se tornar o celeiro na nova crônica brasileira. Não fosse o festival, a cidade teria se tornado apenas mais um mandacaru incrustado no sertão agreste. Mas a língua hidratou aquele solo e fez com que ali florescesse um movimento literário sem precedentes naquele Brasil analfabeto.

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Solano Pascal nasceu num berço de vime e tinha pai desconhecido. Morava numa casa modesta de pau-a-pique, e sua família detinha pouco mais de um oitavo de alqueire que era destinado exclusivamente à plantação e colheita de Jenipapo para venda no comércio local. Desde os 6 anos, o garoto trabalhava no roçado debaixo de sol quente. No final de tarde, com os ombros em chamas, voltava para casa e tentava decifrar os símbolos de um antigo livro de português que possuía. À luz de velas, aprendia com a mãe o português rudimentar passado de geração a geração, e se interessava cada vez mais pela escrita.

Aos 10 anos, Solano saiu do roçado pela primeira vez para visitar a cidade. Chegou a Carapicuíba do Norte com um saco de Jenipapo às costas e mais nada. Iria vender o excedente da produção e pegar carona num caminhão pau-de-arara. Coincidentemente, era época do festival nacional de Crônicas, e o garoto resolveu espiar. Encantou-se pelo que viu, e voltou para casa no dia seguinte, com alguns trocados, mais uma pilha de crônicas mimeografadas debaixo do braço. Decidiu naquele dia que seria cronista.

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Na segunda vez que visitou a cidade, dois anos depois, Solano esperava encontrar Carapicuíba do Norte novamente tomada pelo fervor do festival. Mas nada acontecia por lá. O festival aconteceria apenas dali três meses e além disso, o motivo da sua ida era outro. Sua saúde estava debilitada, e a mãe o acompanhou até o Hospital Municipal. O garoto tinha fortes dores no corpo e na cabeça, tinha hemorragias freqüentes e mal agüentava trabalhar no roçado. Após de uma bateria de exames nos equipamentos primitivos do hospital, o médico diagnosticaria, uma semana depois, que o garoto tinha Leucemia Crônica, já em estágio avançado.

Solano foi internado às pressas no modesto hospital, e tratado na medida do possível. Ingeria medicamentos pesados que lhe inchavam o fígado diariamente, e eventualmente, passava por sessões desgastantes de quimioterapia. Quando lhe sobrava alguma disposição, o garoto se punha a escrever, da maneira que sabia, uma crônica. A mãe assistia a tudo inerte. Nada podia fazer a não ser lamentar e orar.

O festival se aproximava, e Solano levava fé que conseguiria ler sua crônica no palanque da Praça Roosevelt Menezes. Tinha escrito com todo seu empenho e revisava constantemente sua obra singular. Até se sentia mais disposto, como se estivesse vencendo a enfermidade. Dizia para mãe que seria um cronista famoso, e que sua família nunca mais precisaria colher Jenipapos.

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Na madrugada que antecedeu o festival, o garoto sofreu uma recaída. Sua condição deixou de ser estável e a mãe ouviu ali a voz de Deus pedindo-o de volta. Solano foi levado pelos anjos às quatro e quinze da madrugada.

O coração estraçalhado da mãe só lhe dava uma orientação, e ela seguiu dignamente. Na manhã seguinte, ela subiu no palanque da Praça e declamou a crônica que o filho escrevera nos meses anteriores. Com o peito rasgado, a mulher compartilhou com os presentes a dor de perder um filho e levou a todos o testemunho de quem sofreu com o pior mal do mundo, a Leucemia.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Poemas Mal Cheirosos

Hoje eu dou o pontapé inicial na nova série residente deste sítio, Poemas Mal Cheirosos.

A série é uma forma de darmos vazão às idéias, pois por muitas vezes uma estória encavala n'outra, que apaga uma, e acaba fazendo um estrago em nosso cérebro. Então depois de perder algumas idéias, eu tive a luz de criar essa, que pretende ser a maior série textual dos últimos dias.

O "poema" a seguir já foi classificado como uma reflexão, mas no fundo é um "poema" mesmo. Ele nos faz refletir sobre o que é ética, mas acaba não contando nada de especial. Sem mais delongas, segue o pior "poema" que você ja leu em toda a sua vida.




O que se entende por ética?
O que você sabe sobre ética?
Seria ético eu matar alguem agora, nesse exato momento?
Porque não? Aquele filho da puta sentando alí atropelou um cavalo certa vez.
A sociedade, de certo, condenaria o meu crime. Eu não.
Então o que é ética?
É pessoal.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Copacabana é pura emoção

Garotão boa pinta passeia de sunga nas areias de Copacabana. Casco de cerveja na mão direita, colar de semente de açaí no pescoço, rolex reluzente no pulso esquerdo, gingando feito Nega Fulô no carnaval, ao atravessar a praia admirando as beldades que se bronzeavam ao sol de topless. “Tudo lindo, Rio maravilha, essa é a vida que eu quero pra mim”, pensa ele.


Na passada seguinte fareja um malandro de olho no seu relógio, e num piscar de olhos o marginal toma-lhe a coisa do pulso sem pestanejar e acelera no cooper até o alto do morro. O garotão até balança a garrafa feito maça medieval, pronto pra atirar na testa do delinqüente, mas sem sucesso, só faz derramar o líquido amarelado pelas costas, e respinga num idoso que repousa logo ao lado.

Garotão agora puto da vida, caminhando enfurecido, sem rolex e sem moral, ainda de sunga, com sede de justiça no estilo Charles Bronson, entra num devaneio psicótico. No meio desse mesmo devaneio, acorda com outro malandro espiando sua carteira. Sem nenhuma dúvida, saca do casco semi-vazio e atinge a testa do potencial salteador, jorrando sangue no próprio peito, com uma expressão diabólica. O ferido, por sua vez, cai na areia inerte, com um caco enterrado na fronte e expressão de dor, muita dor.

Movimentação, grito de pânico, indignação popular, e agora o garotão é vilão da história. “Playboy-filha-da-puta” é o que ele escuta de mais brando, já aterrorizado pela perspectiva de linchamento público. Olha para o ferido, e dois passos pra trás vê uma caixa de engraxate. Aos próprios pés, encontra o cartão de crédito do papai, quase encoberto pela areia. Liga os pontos e se dá conta de que o engraxate vinha lhe devolver o cartão, e quem sabe, solicitar um trocado para uma água de Coco.
Ao final da retrospectiva, é justamente isso que lhe vem à cabeça: Coco.

Lançado por um plebeu, o Coco atinge a cabeça do garotão com uma precisão que até Davi aclamaria. Resulta em sangue escorrendo pela face do playboy entorpecido pela pancada, e o baque do seu corpo desmontando sobre a areia de Copacabana. A turba é pura satisfação, e se dissipa logo que a ambulância chega para o socorro dos dois moribundos. Restam os corpos inanimados do garotão e do engraxate, caídos de braços abertos na mesma direção do Cristo, que repousa de peito aberto no alto do Corcovado.

O Rio de Janeiro é um turbilhão de emoções.

Obs: O autor gostaria de esclarecer que o conto acima não contém, de maneira alguma, qualquer crítica ao Rio de Janeiro. A cidade maravilhosa é apenas o cenário dessa história, que poderia acontecer em Belém do Pará, São Paulo, Novo Hamburgo, ou qualquer outro lugar.