sábado, 25 de outubro de 2008

Involução da Espécie

Ele sentia saudades da pacata vida no campo. Tardes passadas a café e pão de minuto na mureta do refeitório, onde os mais diversos assuntos pipocavam entre confidências e considerações sobre a vida alheia. Além dos bancos de alvenaria, tocos de lenha estalavam no fogão que aquecia um velho bule metálico, desgastado pelo tempo e pelas quedas. Ainda assim, o cheiro do café misturado à chuva do fim de tarde era imbatível. O cenário completava-se com o trajeto da água, que corria bica abaixo pelas corredeiras de madeira, até escorrer sobre o velho monjolo improvisado, que pilava os grãos que serviriam para o jantar.

Era uma vida amena, alheia ao frenesi da metrópole que agora ele chamava de sua terra. Ali não havia fogão à lenha nem comida fresca, não tinha cheiro de chuva e muito menos monjolo. Ali era tudo na base do microondas-congelados-poluição-triturador. Tudo minuciosamente projetado pra facilitar a vida, para preservar o nosso mais precioso bem: o tempo. E ainda assim, este (o tempo) corria muito mais depressa cá, na cidade, do que lá, no campo.

A cidade centralizava tudo. Era tudo organizado, conglomerado, ordenado e orientado pra trazer mais qualidade de vida. Todas grandes evidências de como o homem evoluiu e se distanciou daquele estilo de vida precário, quase primitivo que viveu na maior parte da sua história. E no entanto, até Homo-Erectus pareceu às vezes ser mais feliz do que seu longinquo sucessor, Sapiens Sapiens.

As invenções trouxeram ao homem sabedoria, praticidade e, essencialmente, dependência. Tanto é verdade, que para ele (o protagonista), a vida no campo era extremamente atrativa, mas impraticável. No campo não havia Wirelless, não tinha Leite UHT em caixa, e muito menos lasanha congelada. Lá não tinha TV a cabo, cobertura GSM, Bilhete único ou E-commerce. A pessoa mais próxima que poderia lhe enviar conteúdo por bluetooth estaria a pelo menos 500 km de distância. E no entanto, ele (o protagonista) não dependia mais das coisas do campo, aquelas que a vida lhe proporcionou naturalmente.

Todos esses pensamentos lhe passaram pela cabeça, enquanto ele bebericava, pela primeira vez em 15 dias consecutivos, um longo copo d'água gelada. Água Mineral pura, sem gás, sem gostinho de limão, sem "Zero Açúcar", sem caramelo, sem cafeína, sem conservantes.

E esse pensamento trouxe ao homem um prognóstico sombrio.

Ele viu as fendas se abrindo no solo árido, viu as carcaças juntando formigas, viu prédios em ruínas, viu o sol se esconder sob um céu cinza denso. Se assombrou com semelhantes disputando restos de comida, estapeando-se diante de um cesto de lixo virado. Exibiam olheiras profundas e costelas proeminentes debaixo de trapos de pano. Do céu, e essa foi a imagem que mais lhe marcou, chovia dinheiro, milhares de dólares, mas ninguém se preocupava em disputá- lo, e ele compreendeu o porquê: dinheiro não se come nem se bebe.

O homem entendeu que sua espécie estava fadada ao fracasso. Todo o caminho evolutivo percorrido levou a humanidade ao seu ponto de partida. Eram novamente primatas, subordinados à lei da natureza.

"Do pó vieste, ao pó retornarás".

- x -

Naquela noite, ele (o protagonista) recolheu todos os seus pertences em numa mala de couro. Antes mesmo do sol nascer, ele partiu.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Storyboard

A agulha rasga delicadamente os vincos do biscoito de vinil. Um baixo grave inaugura a faixa, numa tonalidade soturna, acompanhado pelos baques secos da bateria. John Lennon canta fino: 

Here come old flattop, he come, groovin up slowly (...)

Dedos levantam as meias de algodão pretas sobre as canelas, e os pés se encaixam no par de sapatos bem lustrados e vistosos. Um close-up na altura dos quadris apresenta um protagonista encaixando cuidadosamente sua parceira no coldre. No reflexo do espelho, ele ajeita o farto bigode salpicado de fios brancos por entre a maioria dos pêlos negros. E masca um chiclete.

Já fardado, bate a porta do apartamento, revelando parte de um maço de Lucky Strike, que repousa junto ao peito, no bolso.

(...) Got to be a joker, he just do what he please (...)

Ele ganha as ruas com um andar destemido. As pessoas o observam com reverência, um certo reconhecimento de sua autoridade. Ele seleciona um entre os cigarros do seu maço e posiciona-o entre os lábios. Um homem parado à frente da quitanda, entrega-lhe uma caixa de fósforos. Ele acende seu cigarro, mete os fósforos no bolso e pede um refrigerante.

(...) monkey finger, he shoot, Coca-Cola, he say (...)

No caminho do trabalho, desfruta o refrigerante em três goles longos. Mete a bituca pela boca da garrafa, arremessa com precisão o vasilhame num cesto de lixo e adentra a delegacia. A jovem secretária observa-o com admiração, mas antes que possa lhe dar um "bom dia", o rádio interrompe o iminente diálogo, com uma nova ocorrência. Logo, 2 oficiais de fardas pretas se juntam ao destemido protagonista, que toma o assento de motorista do velho Ford Crown Victoria, placa 28IF. 

O veículo ganha as avenidas com rapidez, dobrando esquinas abruptamente e fazendo os oficiais sacolejarem dentro do automóvel, enquanto o motorista sorri com mais um cigarro entre os dentes. A luz do sol torna as lentes do Ray Ban levemente translúcidas, revelando sangue e adrenalina nos olhos do condutor.

Logo chegam a um velho prédio abandonado. Para surpresa de todos, o elevador funciona, ainda que precariamente. Um dos oficiais pressiona o botão 5, e aguarda. Já postados à porta de um dos apartamentos, os dois oficiais encaram o protagonista, que conserva o olhar de loucura.

(...) Hold you in his armchair, you can feel his disease (...)

Ele os encara de volta e convida para o show.

(...) Come together, right now, over me (...)

Mete o pé na porta com força.

Paralelamente, o solo incendiário de teclado ilustra a cena de tiroteio. 

Reagindo rapidamente, quatro bandidos tombam a mesa de cartas, transformando-a numa trincheira. Projéteis voam pela saleta, e policiais e bandidos trocam tiros do batente para a mesa, e vice-versa. 

A guitarra torna o ambiente mais psicodélico e abafa os ganidos daqueles que foram baleados. Em seguida, os instrumentos silenciam e, novamente, apenas o baixo dá o tom da cena.

Agachado à porta, um dos policiais afaga o braço direito, enquanto o sangue lhe corre entre os dedos. Há buracos de bala por toda a parede. À frente dos oficiais, corpos repousam inanimados. O protagonista leva o cano fumegante de volta ao coldre e conta os bandidos.

(...) one, and one, and one is three (...)

Resta um gatuno no local, esgueirado em algum dos cômodos. Vigilantes, os policiais investigam o local. A sala é iluminada apenas pelos feixes de luz que penetram pelos buracos da persiana de metal. Mas antes que possam reagir, o úlltimo dos bandidos surge no final do corredor, empunhando uma shotgun calibre 12. Em Slow Motion, ele dispara contra os homens desavisados. 

Um tiro para cada. 

As balas se estilhaçam em minúsculas partículas que perfuram o torso dos policiais. Novamente, a guitarra silencia os feridos

O bandido joga a espingarda no chão e caminha para a saída. Um close-up na face do protagonista exibe toda sua virilidade se esvaindo, junto com o pouco de vida que lhe resta. Ao fundo, a trilha lentamente se apaga, dando lugar ao som da ignição e do motor se distanciando. 

(...) one, and one, and one is three (...)

Fade out para o preto.

Sugestão de trilha-sonora para Leitura: The Beatles - Come Together

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Dos contos desaparecidos

Caros colegas,


Em meu nome e no de Hesílio, agradeço fervorosamente a presença dos poucos, porém frequentes leitores deste blogue.

Há algum tempo, me propus escrever um conto em diversas partes, sem sequer desconfiar do rumo que ele poderia tomar e do número de capítulos que teria. Simplesmente decidi que escreveria alguns parágrafos para então misturar as estórias. Baseado em memórias e acontecimentos cotidianos, iniciei o exercício.

Entretanto, passados 2 meses, optei por descontinuar a sequência de contos. Não por preguiça, ou por bloqueio, mas simplesmente porque me vi descontente com o rumo que a história tomou, e isso fez com que eu perdesse o estímulo para postar uma sequência.

Por ora, prefiro removê-la do blogue e me permitir escrever sobre outras coisas que ainda pipocam nos meus pensamentos. Quem sabe, um dia volte a cutucar este conto e publique-o aqui, devidamente concluído e, muito provavelmente, modificado.

Com isso, espero manter alguns dos fiéis leitores que felizmente conseguimos desde que o Clube é Clube, e quiçá conquistar um punhado a mais. Espero também encontrar sugestões, críticas e até textos por essas bandas nos próximos meses.

Garanto-lhes contos e crônicas auspiciosas.

Abraços Fraternos,

Basílio Sgaratti

terça-feira, 20 de maio de 2008

Jornada efêmera

O andarilho acordaria cedo no próximo alvorecer. Partiria de mala e cuia para um destino incerto - para onde o vento lhe orientasse. Enfrentaria o calor destrutivo do meio-dia e chegaria ao vilarejo mais próximo ao fim da tarde, sem nada ter comido. Não beberia água até a manhã seguinte, quando seria acordado pelos guardas com chutes.

Seria capturado por homens de farda que o levariam a uma cela escura. Ali, beberia uma água turva e comeria um pão embolorado, servido numa vasilha de metal imunda. Passaria três dias consecutivos sob tal dieta, até que um general condecorado aparecesse para lhe interrogar. Balbuciaria sem forças suas respostas e em troca receberia golpes na nuca e no estômago. Depois cuspiria um sangue denso sobre o chão de concreto áspero, onde passaria as próximas 6 horas, sob o efeito alucinógeno da dor.

Acordaria com a cusparada do general repousando sobre sua face. O homem portaria um documento em papel amarelado, outorgando-lhe a liberdade, sob a condição de exílio do vilarejo. O andarilho então aceitaria a proposta sem pestanejar e partiria para um novo destino tão logo pudesse. Na saída do quartel, os guardas zombariam de sua aparência e lhe golpeariam o fígado com a coronha de suas espingardas. Ele capengaria até a saída, onde recobraria o fôlego e partiria de volta à estrada.

Antes, porém, que muito pudesse avançar, seria abordado por dois gatunos que tomariam os poucos pertences que lhe restavam (um lenço bordado com suas iniciais, um isqueiro engasgado, uma caneta de ponta fina e um pequeno bloco de notas rasurado). Depois amaldiçoaria sua jornada audaz e recairia sob uma palmeira na planície onde se encontrava.

Amanheceria com a brisa afagando-lhe a face e o sol dourando seus cabelos. Sentiria a barba coçar enquanto as moscas lhe roçassem as bochechas, farejando podridão. Sentiria a picada lancinante de um escorpião lhe rasgar a fíbula e depois pereceria sob o sol escaldante, enquanto o veneno espesso lhe tomaria as veias rumo ao átrio. Tudo escureceria.
- x -

De súbito, o andarilho despertou da alucinação proveniente de uma forte insolação. Isolado na planície árida do deserto, ele enxergou dois vultos se aproximando no horizonte trêmulo. Contaminado pelo mau presságio que o sol lhe confiou, o pobre homem tateou os bolsos desesperadamente até encontrar um caneta de ponta fina, com a qual perfurou a própria garganta e sangrou até a morte.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Auto-Ajuda

"Eu sou o único responsável pelo rumo que a minha vida toma. As outras pessoas são apenas coadjuvantes da minha história, porque no fim das contas, sou eu quem decide como vai ser do início ao fim. Sou eu quem faz as escolhas.

Se vida está boa, é mérito meu. Se a vida está uma merda, a culpa é minha. Ninguém é influente o bastante para mudar minha vida ou decidir o meu destino. É uma questão de força ou de fraqueza, de foco ou da falta dele. É a opção de ser impulsivo ou racional. De correr riscos ou fugir deles.

Eu posso mudar minha vida se eu quiser. Basta que eu defina um objetivo e me dedique o suficiente para que ele se concretize. Sem me acomodar, sem ser negligente, sem mentir para mim mesmo. Não adianta fingir ser outra pessoa, acreditar nas minhas próprias máscaras. Não adianta distribuir a culpa, ou passá-la para frente.

Eu preciso fazer escolhas o tempo todo. Eu sou a amálgama dessas escolhas, o que resta das minhas decisões. Se sou infeliz, o sou por que em algum momento fui indolente. Eu não posso simplesmente esperar a mudança e me acomodar. Eu preciso me mexer, eu preciso me superar.

Eu preciso ser mais.

Eu posso ser maior do que o meu corpo permite. Não existe a incapacidade. Eu posso ir além das barreiras, posso ultrapassar os limites. Eu não preciso ser sempre a mesma coisa. Eu posso mudar. Sempre. Por que nunca é tarde para mudar. Eu simplesmente não preciso colher os frutos de uma decisão infeliz para o resto da vida. E eu me dou o direito de fazer quantas escolhas infelizes eu quiser. Eu sou o meu juiz. Eu dependo das coisas das quais eu decidi depender. Eu valorizo o que eu bem entender. Eu acredito no que quiser.

Não, não quero morrer infeliz e sozinho. Não quero viver sem sentido. Não quero ser escravo da indolência. Não quero ser patético e colocar a culpa na sociedade. Na verdade, não quero esperar nada da sociedade. Não quero ser famoso e nem quero me tornar uma lenda. Não quero carregar um legado e tampouco deixá-lo de herança a alguém. Eu quero apenas que a minha vida faça sentido para mim. E se um dia ela não fizer sentido, é porque tem algo muito errado. Então eu saberei que é hora de mudar.

Eu, eu, eu, eu, eu.
E quanto aos outros?

Bem, o mesmo vale para os outros e para você. Acredite ou não."

Imprima este trecho. Acorde todas as manhãs e leia-o atentamente.
Pare de procurar um sentido para sua vida, e simplesmente dê um sentido à ela.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Conto Crônico


Carapicuíba do Norte fervilhava com o festival nacional de crônicas. O turismo movimentava o comércio, as pousadas e os bordéis. Era o evento bienal de maior destaque da pequena cidade depois do carnaval. Milhares de estudantes, professores, jornalistas e, claro, cronistas de todas as nacionalidades se reuniam ao redor da Praça Roosevelt Menezes para ouvir atores a autores declamando textos sublimes, vigorosos ou parnasianos. O nome da Praça provinha de um antigo pensador e fundador do jornal local.

Não havia vencedores. Ou melhor, só havia vencedores. Todos ganhavam com a disseminação da literatura, porque ali aprendiam novos vocábulos, novas maneiras de expressão, e conheciam melhor a natureza do ser humano. Além disso, revelavam-se novos autores a cada edição do evento.

Era uma dádiva para a cidade se tornar o celeiro na nova crônica brasileira. Não fosse o festival, a cidade teria se tornado apenas mais um mandacaru incrustado no sertão agreste. Mas a língua hidratou aquele solo e fez com que ali florescesse um movimento literário sem precedentes naquele Brasil analfabeto.

- X -

Solano Pascal nasceu num berço de vime e tinha pai desconhecido. Morava numa casa modesta de pau-a-pique, e sua família detinha pouco mais de um oitavo de alqueire que era destinado exclusivamente à plantação e colheita de Jenipapo para venda no comércio local. Desde os 6 anos, o garoto trabalhava no roçado debaixo de sol quente. No final de tarde, com os ombros em chamas, voltava para casa e tentava decifrar os símbolos de um antigo livro de português que possuía. À luz de velas, aprendia com a mãe o português rudimentar passado de geração a geração, e se interessava cada vez mais pela escrita.

Aos 10 anos, Solano saiu do roçado pela primeira vez para visitar a cidade. Chegou a Carapicuíba do Norte com um saco de Jenipapo às costas e mais nada. Iria vender o excedente da produção e pegar carona num caminhão pau-de-arara. Coincidentemente, era época do festival nacional de Crônicas, e o garoto resolveu espiar. Encantou-se pelo que viu, e voltou para casa no dia seguinte, com alguns trocados, mais uma pilha de crônicas mimeografadas debaixo do braço. Decidiu naquele dia que seria cronista.

- X -

Na segunda vez que visitou a cidade, dois anos depois, Solano esperava encontrar Carapicuíba do Norte novamente tomada pelo fervor do festival. Mas nada acontecia por lá. O festival aconteceria apenas dali três meses e além disso, o motivo da sua ida era outro. Sua saúde estava debilitada, e a mãe o acompanhou até o Hospital Municipal. O garoto tinha fortes dores no corpo e na cabeça, tinha hemorragias freqüentes e mal agüentava trabalhar no roçado. Após de uma bateria de exames nos equipamentos primitivos do hospital, o médico diagnosticaria, uma semana depois, que o garoto tinha Leucemia Crônica, já em estágio avançado.

Solano foi internado às pressas no modesto hospital, e tratado na medida do possível. Ingeria medicamentos pesados que lhe inchavam o fígado diariamente, e eventualmente, passava por sessões desgastantes de quimioterapia. Quando lhe sobrava alguma disposição, o garoto se punha a escrever, da maneira que sabia, uma crônica. A mãe assistia a tudo inerte. Nada podia fazer a não ser lamentar e orar.

O festival se aproximava, e Solano levava fé que conseguiria ler sua crônica no palanque da Praça Roosevelt Menezes. Tinha escrito com todo seu empenho e revisava constantemente sua obra singular. Até se sentia mais disposto, como se estivesse vencendo a enfermidade. Dizia para mãe que seria um cronista famoso, e que sua família nunca mais precisaria colher Jenipapos.

- X -

Na madrugada que antecedeu o festival, o garoto sofreu uma recaída. Sua condição deixou de ser estável e a mãe ouviu ali a voz de Deus pedindo-o de volta. Solano foi levado pelos anjos às quatro e quinze da madrugada.

O coração estraçalhado da mãe só lhe dava uma orientação, e ela seguiu dignamente. Na manhã seguinte, ela subiu no palanque da Praça e declamou a crônica que o filho escrevera nos meses anteriores. Com o peito rasgado, a mulher compartilhou com os presentes a dor de perder um filho e levou a todos o testemunho de quem sofreu com o pior mal do mundo, a Leucemia.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Poemas Mal Cheirosos

Hoje eu dou o pontapé inicial na nova série residente deste sítio, Poemas Mal Cheirosos.

A série é uma forma de darmos vazão às idéias, pois por muitas vezes uma estória encavala n'outra, que apaga uma, e acaba fazendo um estrago em nosso cérebro. Então depois de perder algumas idéias, eu tive a luz de criar essa, que pretende ser a maior série textual dos últimos dias.

O "poema" a seguir já foi classificado como uma reflexão, mas no fundo é um "poema" mesmo. Ele nos faz refletir sobre o que é ética, mas acaba não contando nada de especial. Sem mais delongas, segue o pior "poema" que você ja leu em toda a sua vida.




O que se entende por ética?
O que você sabe sobre ética?
Seria ético eu matar alguem agora, nesse exato momento?
Porque não? Aquele filho da puta sentando alí atropelou um cavalo certa vez.
A sociedade, de certo, condenaria o meu crime. Eu não.
Então o que é ética?
É pessoal.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Copacabana é pura emoção

Garotão boa pinta passeia de sunga nas areias de Copacabana. Casco de cerveja na mão direita, colar de semente de açaí no pescoço, rolex reluzente no pulso esquerdo, gingando feito Nega Fulô no carnaval, ao atravessar a praia admirando as beldades que se bronzeavam ao sol de topless. “Tudo lindo, Rio maravilha, essa é a vida que eu quero pra mim”, pensa ele.


Na passada seguinte fareja um malandro de olho no seu relógio, e num piscar de olhos o marginal toma-lhe a coisa do pulso sem pestanejar e acelera no cooper até o alto do morro. O garotão até balança a garrafa feito maça medieval, pronto pra atirar na testa do delinqüente, mas sem sucesso, só faz derramar o líquido amarelado pelas costas, e respinga num idoso que repousa logo ao lado.

Garotão agora puto da vida, caminhando enfurecido, sem rolex e sem moral, ainda de sunga, com sede de justiça no estilo Charles Bronson, entra num devaneio psicótico. No meio desse mesmo devaneio, acorda com outro malandro espiando sua carteira. Sem nenhuma dúvida, saca do casco semi-vazio e atinge a testa do potencial salteador, jorrando sangue no próprio peito, com uma expressão diabólica. O ferido, por sua vez, cai na areia inerte, com um caco enterrado na fronte e expressão de dor, muita dor.

Movimentação, grito de pânico, indignação popular, e agora o garotão é vilão da história. “Playboy-filha-da-puta” é o que ele escuta de mais brando, já aterrorizado pela perspectiva de linchamento público. Olha para o ferido, e dois passos pra trás vê uma caixa de engraxate. Aos próprios pés, encontra o cartão de crédito do papai, quase encoberto pela areia. Liga os pontos e se dá conta de que o engraxate vinha lhe devolver o cartão, e quem sabe, solicitar um trocado para uma água de Coco.
Ao final da retrospectiva, é justamente isso que lhe vem à cabeça: Coco.

Lançado por um plebeu, o Coco atinge a cabeça do garotão com uma precisão que até Davi aclamaria. Resulta em sangue escorrendo pela face do playboy entorpecido pela pancada, e o baque do seu corpo desmontando sobre a areia de Copacabana. A turba é pura satisfação, e se dissipa logo que a ambulância chega para o socorro dos dois moribundos. Restam os corpos inanimados do garotão e do engraxate, caídos de braços abertos na mesma direção do Cristo, que repousa de peito aberto no alto do Corcovado.

O Rio de Janeiro é um turbilhão de emoções.

Obs: O autor gostaria de esclarecer que o conto acima não contém, de maneira alguma, qualquer crítica ao Rio de Janeiro. A cidade maravilhosa é apenas o cenário dessa história, que poderia acontecer em Belém do Pará, São Paulo, Novo Hamburgo, ou qualquer outro lugar.

terça-feira, 25 de março de 2008

Adultério

As idéias atraentes passavam pela minha cabeça rapidamente, antes que eu pudesse apanhá-las. Algumas delas se retiam em minha rede cognitiva, e eu as colava umas às outras inadvertidamente, sem qualquer critério. No início, os resultados eram satisfatórios. Parecia fazer sentido trabalhar daquela maneira, espontaneamente, na base do improviso. Mas lentamente a leitura se tornava enfadonha. As idéias não mais fluíam, elas pulsavam.

Durante a manhã minha cabeça fervilhava, tecendo tramas atrás de tramas. Nas tardes, meu cérebro parecia exilar essas idéias, mergulhando-se em sonolência e torpor. Minha disposição parecia ser sugada, tragada pelo estômago durante o almoço. E então, ao fim da tarde, eu colava os cacos que ainda me restavam e tentava extrair dali algum significado. Sem êxito, eu me recolhia à minha incapacidade durante as madrugadas, esperando que a manhã pudesse me trazer alguma luz.

Até que em uma dessas manhãs, a inspiração revelou-se em forma de texto. Uma mulher veio a mim por entre versos, e de súbito, eu me vi apaixonado. Assim como eu, ela vivia de sua escrita, e escondia-se por trás de um heterônimo do gênero oposto: Oswaldo Cartagena. De alguma forma, ao ler sua primeira crônica, eu soube que se tratava de uma mulher. Era ao mesmo tempo sisuda e garbosa, expondo seu ponto de vista eloqüentemente.

Eu, até então casado, secretamente passei a me corresponder com aquela mulher, que pouco tempo depois me revelaria seu verdadeiro nome: Dália.

A descoberta me excitou e com o passar dos dias, eu assumia uma postura cada vez mais obsessiva. Dia e noite eu respirava Dália, e era Dália quem figurava nos meus textos. A curiosidade me acometia, e eu me sentia impelido a descobrir mais sobre aquela mulher.

Passei a investigá-la.

Descobri que Dália trabalhava como redatora no jornal local, e nas horas vagas, extraia um pouco mais da sua máquina de escrever. Os textos eram remetidos aos folhetins de domingo, mas cuidadosamente atribuídos a Oswaldo Cartagena, por motivos de segurança. Dália tinha um contrato exclusivo com o jornal.

Paralelamente, minha esposa desconfiava dos meus novos hábitos. Eu acordava cedo demais e voltava para casa cada vez mais tarde. A ausência de filhos me permitia ter um horário irregular.
Eu fazia vigílias constantes ao redor da casa de Dália. Sonhava com madrugadas voluptuosas em sua companhia enquanto invadia sua privacidade. Adúltero, me apropriei da vida de Dália como se ela fosse a minha esposa e negligenciei tudo o que havia construído até então, sem sequer tocar naquela mulher.

Não tardou até que a minha esposa descobrisse tudo através de uma carta inacabada no fundo da minha gaveta. Antes que eu pudesse me explicar, ela já partia com suas coisas para a casa da mãe. Fez questão também de redigir de próprio punho uma carta a Dália, contando-lhe tudo o que sabia.

Dália suspendeu nossas correspondências e algumas semanas depois, se mudou de cidade. Deve ter se apavorado com a possibilidade de um psicopata lhe vigiando. Sumiu da minha vida como as idéias que se esvaiam da minha cabeça depois do almoço.

Não, mais do que isso: Dália foi tragada pela minha vaidade.

quarta-feira, 19 de março de 2008

O Futuro do País

Betinho era um garoto comum, apaixonado por futebol desde cedo. Aos 8 anos de idade já era um torcedor fanático. Acompanhava o pai nos jogos do seu clube do coração, assistia todos os programas de debate esportivo que podia e colecionava figurinhas. Teve mais de 10 álbuns diferentes, de clubes nacionais e internacionais, desde a época em que mal sabia ler. Agora, há 2 anos matriculado no ensino público, Betinho sabia ler bem, e se divertia com as informações e estatísticas que encontrava nos cromos, e nos seus respectivos álbuns.

Em pouco tempo, Betinho se tornou uma mini enciclopédia do futebol. Sabia milhares de nomes de jogadores e de times, conhecia um bocado de árbitros, e vez ou outra, dava uns pitacos enquanto assistia aos jogos pela televisão junto com o pai. Em contrapartida, tinha problemas com matemática, história, ciências e geografia. Não que ele canalizasse seus esforços em saber mais sobre futebol, mas pelo ambiente em que vivia. No Colégio, Betinho tinha um ensino deficiente. Em casa, a televisão passava futebol e violência em excesso.

Num dia qualquer, o pai de Betinho lhe presenteou com 3 pacotes de figurinhas para o seu álbum. O garoto agradeceu o pai e logo foi rasgar os pacotes para ver o que tinha tirado de novo. Abriu o primeiro e encontrou 1 goleiro, um escudo de time e dois jogadores do seu clube. No segundo recebeu dois jogadores repetidos, um árbitro e um mascote de um clube rival. Ao abrir o terceiro pacote, Betinho surpreendeu-se.

Havia um único cromo, diferente de todos que já havia tirado. Acredite ou não, era uma foto do presidente do Brasil, com uma expressão grave no rosto, apontando o dedo para ele, Betinho. Além da foto incomum, continha os dizeres: "Você é o futuro do País". Assustado, o garoto guardou rapidamente a figurinha no bolso quando viu seu pai entrar no seu quarto.

Algum tempo depois, Betinho sentou-se no muro de sua casa e começou a pensar. O presidente designou-o para uma missão. Ele não tinha pedido por uma missão e não se sentia pronto para cumpri-la. Na verdade, “Futuro do País” era muito abstrato para ele, mas o fato é que a missão dependia dele. Até o presidente depositava sua confiança no garoto.

Foi um fardo que jogaram sobre as costas de um garoto, que mal sabia fazer contas, vivia numa casa modesta e estudava num colégio medíocre. Mal sabia Betinho que essa missão não era só dele. Ele compartilhava o fardo com toda a sua geração, inclusive com garotos e garotas que ele nunca imaginou que existiam, e que viviam nas mesmas condições que ele.

A tarefa tinha sido distribuída não só pelo presidente, mas pelos professores, dirigentes, ministros e grande parte das pessoas adultas. Simplesmente decidiram que aquela geração seria o futuro do país, e não se preocuparam em fornecer qualquer subsídio para que aquilo acontecesse. Tanto é verdade, que o dinheiro do ensino público continuou sendo desviado, os recursos naturais continuaram sendo gastos compulsoriamente e os problemas do país foram se acumulando, para que aquela geração se encarregasse de passar a régua.

Conforme esperado, a geração não passou a régua. Muito pelo contrário, passou o dever adiante, para a geração seguinte. Betinho não se destacou. Cresceu e se tornou segurança de uma boate, sustentando mulher e três filhos com um salário irrisório. Hoje, Betinho não compra cromos de futebol para os filhos, com medo de que um deles tire a figurinha do presidente. Mal sabe ele que o fardo é jogado diariamente sobre as costas das crianças daquele país.

quinta-feira, 13 de março de 2008

O último tango de Rocca.

Era 11 de Julho de 1932. Meu nome é Rocca Mendes, herdeiro da Companhia Paulista de Café Roxo e militante do Partido Republicano Paulista. Naquele tempo, o estado clamava por liberdade pois a revolução constitucionalista tinha acabado de explodir. Eu precisava ir embora de qualquer maneira e, brasileiro irredutível e apaixonado que sou, nunca quis pegar as trouxas e abandonar o meu lar. Mas não tinha jeito, era a minha única escolha. Arrumei rapidamente umas poucas trocas de roupa e embarquei pra Buenos Aires.

Estranho pra um brasilerio convicto pisar em terras portenhas. Eu os olhava com ar de inferioridade, e é exatamente por isso que os fatos mostravam o contrário. Eu era peixe pequeno ali. Logo entrei em depressão. Não cultivei amizades, pois na verdade poucos gostavam de mim. Talvez pelo meu ego demasiado inflado, ou pela minha falta de modéstia. Achei que ia morrer sozinho. Mas não.

Tudo aconteceu num sábado. Ela estava vestindo um longo vestido vermelho de cetim. Usava um perfume intensamente marcante, balanceado entre o doce e o cítrico. Seus olhos eram puxados, mas não orientais, envolvendo uma bela coloração castanho-esverdiado. Seu cabelo era longo, levemente encaracolado e negro. Negro como a noite mais bela sob o luar. Ela possuía um corpo esguio e a pele era maravilhosamente bronzeada. Com aquela vestimenta decotada e cortada até o meio das coxas, ela dançava como ninguem o tango. Naquela noite eu decidi que não iria mais embora. Meu lugar era ali.

Durante longas 3 horas eu a vi desfilar, dançar e se derreter com o calor de meus olhares. Ela era tão linda que os homens sentiam medo de se aproximar. Sorte a minha. Num dado momento eu criei coragem e troquei rápidas palavras com a moça.


-"Lucía, es mío nombre." - Disse a moça. Sua voz era aveludada. Extremamente prazerosa de ouvir.

- "Placer en conocer vos." - Eu respondi num vergonhoso portunhol. Ela riu.


E foi assim que tive o primeiro contato com a mulher que um dia me traria desgraça. Mas disso eu ainda não sabia. Realmente foi um belo e ingênuo amor cego a primeira vista.

Lucía e eu namoramos por dias e dias a fio. Eramos apenas nós e as paredes revestidas pelo papel de parede florido. Petúnias ou tulipas... eu nunca entendi muito bem de flores. Mas o que importa era que estavamos nos apaixonando. Pelo menos era o que eu achava.

O fato é que: o que faz um cidadão brasileiro e, o mais importante pra época, paulista, na Argentina em 1932, em plena revolução constitucionalista? Óbvio. Fugia ou se escondia da ditadura. Pois bem, a moça era espiã a serviço da República. Seu nome era na verdade Maria Trentti, esposa do Coronel Villas Boas, então comandante do 2º Pelotão das Forças Armadas Nacionais, que estavam em atividade no front de guerra massacrando os meus companheiros. A verdade veio a tona quando a moça foi ao mercado ao lado de minha casa para comprar tomates e ervas finas. Descuidada, deixou a bolsa, e dentro dela eu vi a prova. Documentos, cartas do coronel, um batom vermelho e uma carteirinha do Club de Tango Porteño. Quando chegou em casa, muitas coisas passaram pela minha cabeça. Eu podia leva-la para a Europa, nós podiamos viver às escondidas. Eu a amava tanto... mas o que ficou ali, estagnado em meu pensamento, não podia ter sido outra coisa. Foi como um passo de tango. Triste e mortal. Três tiros.

Dois pra ela... um pra mim.

Como prometido. Não morri sozinho.

Roberval

Roberval abriu as pálpebras e deu de cara um com uma Carranca de Porcelana (!?). Com o susto, bateu o crânio na cabeçeira da cama. Levantou-se afagando o cocoruto e observou o quarto. Não era o seu quarto, tampouco algum quarto conhecido. Fedia a mofo, era mal iluminado e bastante pequeno. Procurou pela porta durante 2 minutos, até se dar conta de que não havia porta.


"Como assim não há uma porta?" - ele se perguntava.

Simplesmente não havia. Sabe Deus como Roberval foi parar ali, mas fato é que a sua fuga havia se tornado impossível. E a consciência deste fato só fazia Roberval querer sair dali mais rápido. Ele então olhou para o teto e não viu lustre.

"Como raios esse quarto está sendo, ainda que porcamente, iluminado?" - esbravejou o nobre rapaz.

Voltou-se para a Carranca e viu dois feixes de luz saindo de seus olhos. Confuso, resolveu apanhar o objeto e utilizá-lo como uma lanterna. Era mais pesado do que julgara, e por isso, não aguentou movimentá-lo por muito tempo. Soltou-o no chão, e em questão de milésimos de segundo, a Carranca se espatifou.

Tudo ficou escuro, e agora Roberval caminhava descalço pelo pequeno cômodo, repleto de cacos de porcelana no chão. Era uma armadilha do destino, com certeza. Mas vagando pelo espaço, o rapaz encontrou um pedaço de papel. Forçou a vista, mas não podia ler. Até que, cegamente, tateou o olho da Carranca, e com uma leve chacoalhada, fez surgir novamente o fraco feixe de luz.

Iluminou o papel, e pôs-se a ler:

"Roberval abriu as pálpebras e deu de cara um com uma Carranca de Porcelana (!?). Com o susto, bateu o crânio na cabeçeira da cama. Levantou-se afagando o cocoruto e observou o quarto. Não era o seu quarto, tampouco algum quarto conhecido. Fedia a mofo, era mal iluminado e bastante pequeno. Procurou pela porta durante 2 minutos, até se dar conta de que não havia porta (...)".

Era demais para o seu coração. Imaginar que aquele papel descrevia fielmente o que ele havia passado nos últimos minutos era muita loucura. Mas ele não imaginava, ele vivia aquilo. Roberval mijou-se todo. Depois começou a andar pelo quarto, pisando nos cacos e cortando os pés. Em poucos instantes, sentia um cheiro podre de mijo e sangue, que acometia o cômodo. Estaria ele louco? Teria ele sido abduzido? Estaria ele estrelando Jogos Mortais 10?

Essas perguntas giravam pela cabeça de Roberval, enquanto o cheiro podre lhe dava ânsia de vômito. Ele sentiu uma forte dor no peito, e se deu conta de que estava enfartando. Fez uma expressão horrenda, muito semelhante à da Carranca, e depois caiu duro, sobre os cacos de porcelana.

BUM! fez o desfibrilador em seu peito, e Roberval despertou em 220. Viu a cara embaçada do médico, dos seus familiares e em seguida uma piscada de Carranca. Encheu os pulmões de ar e rescostou-se sobre o leito, aliviado. Ainda tinha o gosto ácido do refluxo na boca, mas pôde sentir o sabor da vida que brotava não sei de onde.

terça-feira, 4 de março de 2008

Sonho interrompido

Andava cabisbaixo pelas calçadas. As pessoas que cruzavam o olhavam com desaprovação, como se ele fosse culpado da situação em que se encontrava. Estava sujo e faminto. Usava suas últimas forças em busca de alimento, bisbilhotando as lixeiras, ávido por migalhas.

Desde cedo vivia nessa situação, quando foi abandonado pela mãe. As ruas eram a sua moradia, e nelas ele aprendeu a se sustentar. Não almejava muito, mas precisava lutar constantemente para conseguir o mínimo para sua sobrevivência. E com 18 anos já se sentia cansado. As pernas fraquejavam, e ele já não enxergava bem.

O movimento de São Paulo sempre foi ameaçador, apesar de que ele nunca teve uma dimensão do tamanho da cidade. Passeava pelos bairros e passava cada noite em um lugar diferente. Já havia se acostumado com os olhares de asco. Ser nômade fazia parte do seu instinto.

Sem saber, já havia percorrido quase toda a capital, e muitas vezes escapado do perigo. Perambulava pelos limites da cidade, por onde residia a população marginal, quando, pela primeira vez, levantou a cabeça e vislumbrou um novo horizonte, um local inexplorado. Sem titubear, correu em direção à sua sorte, mas num súbito baque, tudo escureceu, e seu sonho se esvaiu.

Quatro horas depois, o caminhão do Centro de Controle de Zoonoses de São Paulo recolhia o corpo de mais um cão atropelado na Marginal Tietê.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Doralice

Doralice era uma cabrocha louca para se casar. Nascida em berço tradicional, cresceu ouvindo os pais dizerem que moça boa se casava cedo, e que cuidava da casa. Ao longo dos anos, alimentou o sonho de se casar com um rapaz trabalhador, que lhe sustentasse. Sonhava com um belo casamento, na Matriz Nossa Senhora da Conceição, no centro de Conselheiro Lafaiete, sua cidade natal. Isso por volta de 1960.

Um belo dia, Doralice saltou num ônibus para Diamantina com a prima, cujo nome não interessa. Foram a passeio, para o final de semana na casa dos tios. Chegando lá, a moça se encantou com a cidade, seu patrimônio histórico e tudo mais. A prima lhe prometera um passeio pelo centro no final da tarde, e quando deu a hora, a duas sairam emperequetadas, de sandália nos pés e bolsa no ombro.

Naquela noite, Doralice conheceu um rapaz chamado Giba, que tocava moda de viola numa lanchonete. Paixão fulminante daquelas, Doralice acordou no dia seguinte no covil do rapaz, que dividia a moradia com mais 2 colegas. Tinha sido a sua primeira noite, completamente avessa ao que havia planejado quando criança. A prima, contrariada, tinha ido embora sozinha para casa e disse que a satisfação aos tios ficaria por conta de Doralice.

Quando voltou para casa, já em Conselheiro Lafaiete, ouviu poucas e boas dos pais. Eles não sabiam ainda que a moça havia sido "violada", mas só a aventura já lhe valeu boas palmadas. Ainda assim, a moça guardava o cheiro do lençol sujo na memória. Os acordes do rapaz do violão ressoavam em sua cabeça, e uma semana depois, Doralice tomou um ônibus de volta à Diamantina.

Ao reencontrar Giba, a moça jogou-se aos seus braços e ali começaram um caso mais sério, que durou mais duas semanas. Só não durou mais porque a moça se precipitou e teimou que iria realizar seu sonho de criança com aquele homem. O problema é que não era de comum acordo, e o jovem boêmio tratou de pular fora assim que lhe saltou ao ouvido a primeira indireta.

Sem eira nem beira, Doralice voltou para casa resignada e pronta para ouvir mais. Mas ao pisar na propriedade, presenciou um terrível drama conjugal: o pai havia traído a mãe com a empregada. Poucas horas depois, a empregada estava demitida e Doralice via o pai deixar a casa com uma trouxa na costas.

Sentada na varanda, contemplativa, Doralice ouviu a mãe dizer que "os homens não prestam mesmo", e concordou plenamente, enquanto escutava João Gilberto cantando uma música com o seu nome no rádio.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Nota do Autor

Boa tarde, caros leitores anônimos.

O blog é uma invenção minha e de Basílio, amigo de longa data que por vezes partilha suas mais elétricas e sórdidas estórias com este que lhes fala. O histórico é tanto que "Basílo, Exílio e outro Ílhos" poderia vir a ser um livro.

Ressaltando o que ele disse, se você tem um segredo, uma estória interessante, um relato da história ou uma crônica cômica, por favor, faça a gentileza de nos mandar (anonimamente, é claro). Com alguma certeza, esse documento será colocado no ar e comentado pelos escritores do sítio.

Heterônimos, boa sorte.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Carta de Apresentação

Caro Leitor(a),

Seja bem vindo(a) ao Clube Anônimo.

Este sítio surgiu da necessidade pungente de exilar contos, crônicas e estórias que viajam pela minha cabeça, e pela de outros autores, como por exemplo, meu colega Hesílio. Nossa intenção é compartilhar memórias e acontecimentos fictícios ou não com leitores anônimos, antes que elas começem a corroer nossos cérebros, tornando-o inválido e condicionado.

Há muito espaço para loucuras, segredos sórdidos, curiosidades frívolas e confidências inocentes neste clube. Há também lugar para comentários, opiniões e críticas aos textos que por aqui passam. E assim esperamos criar um clube de intercâmbio, onde pessoas pensantes possam trocar idéias interessantes ou não. Queremos trocar correspondências anônimas com as pessoas mais longínquas e as mais próximas também. Mas não se sinta obrigado a compartilhar qualquer palavra que seja. Sinta-se à vontade para ler e ir embora, ou quem sabe, deixar um bilhete sem assinatura. E lembre-se: Eu não lhe conheço, e você não me conhece. Permaneceremos anônimos enquanto durar a sua estadia. Portanto, lance mão de seu heterônimo e corresponda-se conosco.

Um brinde ao anonimato!

Basílio Sgaratti.