terça-feira, 25 de março de 2008

Adultério

As idéias atraentes passavam pela minha cabeça rapidamente, antes que eu pudesse apanhá-las. Algumas delas se retiam em minha rede cognitiva, e eu as colava umas às outras inadvertidamente, sem qualquer critério. No início, os resultados eram satisfatórios. Parecia fazer sentido trabalhar daquela maneira, espontaneamente, na base do improviso. Mas lentamente a leitura se tornava enfadonha. As idéias não mais fluíam, elas pulsavam.

Durante a manhã minha cabeça fervilhava, tecendo tramas atrás de tramas. Nas tardes, meu cérebro parecia exilar essas idéias, mergulhando-se em sonolência e torpor. Minha disposição parecia ser sugada, tragada pelo estômago durante o almoço. E então, ao fim da tarde, eu colava os cacos que ainda me restavam e tentava extrair dali algum significado. Sem êxito, eu me recolhia à minha incapacidade durante as madrugadas, esperando que a manhã pudesse me trazer alguma luz.

Até que em uma dessas manhãs, a inspiração revelou-se em forma de texto. Uma mulher veio a mim por entre versos, e de súbito, eu me vi apaixonado. Assim como eu, ela vivia de sua escrita, e escondia-se por trás de um heterônimo do gênero oposto: Oswaldo Cartagena. De alguma forma, ao ler sua primeira crônica, eu soube que se tratava de uma mulher. Era ao mesmo tempo sisuda e garbosa, expondo seu ponto de vista eloqüentemente.

Eu, até então casado, secretamente passei a me corresponder com aquela mulher, que pouco tempo depois me revelaria seu verdadeiro nome: Dália.

A descoberta me excitou e com o passar dos dias, eu assumia uma postura cada vez mais obsessiva. Dia e noite eu respirava Dália, e era Dália quem figurava nos meus textos. A curiosidade me acometia, e eu me sentia impelido a descobrir mais sobre aquela mulher.

Passei a investigá-la.

Descobri que Dália trabalhava como redatora no jornal local, e nas horas vagas, extraia um pouco mais da sua máquina de escrever. Os textos eram remetidos aos folhetins de domingo, mas cuidadosamente atribuídos a Oswaldo Cartagena, por motivos de segurança. Dália tinha um contrato exclusivo com o jornal.

Paralelamente, minha esposa desconfiava dos meus novos hábitos. Eu acordava cedo demais e voltava para casa cada vez mais tarde. A ausência de filhos me permitia ter um horário irregular.
Eu fazia vigílias constantes ao redor da casa de Dália. Sonhava com madrugadas voluptuosas em sua companhia enquanto invadia sua privacidade. Adúltero, me apropriei da vida de Dália como se ela fosse a minha esposa e negligenciei tudo o que havia construído até então, sem sequer tocar naquela mulher.

Não tardou até que a minha esposa descobrisse tudo através de uma carta inacabada no fundo da minha gaveta. Antes que eu pudesse me explicar, ela já partia com suas coisas para a casa da mãe. Fez questão também de redigir de próprio punho uma carta a Dália, contando-lhe tudo o que sabia.

Dália suspendeu nossas correspondências e algumas semanas depois, se mudou de cidade. Deve ter se apavorado com a possibilidade de um psicopata lhe vigiando. Sumiu da minha vida como as idéias que se esvaiam da minha cabeça depois do almoço.

Não, mais do que isso: Dália foi tragada pela minha vaidade.

4 comentários:

Neto Macedo disse...

Nossa, que fim trágico para a Dália...

Porque não fazê-la se interessar pelo personagem narrador? Ou fazê-la querer conhecer mais sobre ele?

Acho que os escritores modernos tem uma forte tendência a matar ou pelo menos "sumir" com seus personagens. Hehe... ^^

P.S.: Nunca vi box com dois vasos, mas já fiquei sabendo que existem em alguns banheiros de alguns bares de algumas capitais (leia-se: aglomerações de pessoas aparentemente "modernas").

Basílio Sgaratti disse...

Confesso que tenho uma forte tendência a ser pessimista. Mas Dália, apesar de sensacional, é coadjuvante na história. Nosso foco é o narrador Voyeurista.

De qualquer forma, agradeço a observação e prometo um texto mais otimista, ou ao menos, um destino para Dália.

Abraços Fraternos

Mar e Ana disse...

Noossa!
muito bom :}
A vida desse narrador devia ser bem enfadonha pra ele se aventurar com uma desconhecida de tal maneira a negligenciar todo o resto que havia contruído...
Muito bom o conto!
E ser pessimista, com todos os problemas de hoje em dia, é uma tendência, infelizmente.

:*

Vinícius disse...

Talvez nem tanto enfadonha. E tampouco eu diria uma vida sem paixões. O que o acometeu foi a vaidade. E ela é capaz de nos negligenciar.
Basílio, um prazer em conhecê-lo, se é que posso dizer assim. As presenças serão constantes. Parabéns!